sexta-feira, 22 de julho de 2011

Texto do querido Paulo Guiraldelli Jr. para reflexões:

Tornamo-nos o lixo do mundo

12/07/2011

Quando o relógio da Matriz apontava sete horas e dez minutos, os portões da escola pública que eu frequentava, no interior do Estado de São Paulo dos anos sessenta, eram fechados. O limite de atraso era de dez minutos. Os portões se abriam novamente e, então, os retardatários entravam. E de modo bem rápido. Caso não entrassem, perdiam todas as outras aulas.

No Rio de Janeiro, hoje, em boa parte das escolas públicas, os portões ficam abertos e os alunos vão chegando, chegando, chegando – não há horário de entrada! Portanto, a primeira aula praticamente não existe. Alguns entram na aula, outros não. A ideia básica é mais ou menos esta: se os portões se fecham, eles vão ficar de fora. Ficando de fora, a rua os ganhará e isso é que não pode acontecer. No meu tempo de escola, no Estado de São Paulo, a ideia era outra: não há de se incentivar o cultivo da preguiça e da falta de horário. Quem não consegue se disciplinar para acordar cedo deve perceber que irá não simplesmente “cair para a rua”, mas terá uma sanção social a pagar. Será rapidamente identificado como preguiçoso. A cidade saberá disso ao não lhe dar emprego mais tarde.

Uma vez na aula, na minha escola pública, tínhamos de sentar e prestar bem atenção no professor. A aula era expositiva. O professor Oswaldo Pagni Gelli, de jaleco branco longo, fazia uma detalhada exposição de história do Brasil, com uma sofisticação que hoje nem em uma boa universidade pública é possível ver. Caso ele não estivesse expondo a matéria, então estaríamos na chamada oral. Meninos contra meninas. Ele chamava dois representantes, escolhidos em sorteio, para uma bateria de 3 perguntas cada um, podendo um responder a que o outro não sabia, marcando os pontos que, ao final do curso, eram somados coletivamente para a equipe vencedora. Era uma chamada oral duríssima, pois não era permitida uma grande liberdade na explanação. Não era decoreba não, mas tínhamos de ser bem fiéis ao livro-texto.

No Rio de Janeiro, hoje, o aluno chega para a professora e diz que não sabe se fez ou não a prova. Ela consulta um caderno e diz que ele não fez prova de duas matérias. Ele se espanta: como “duas”? Ele reclama então: “mas a senhora dá duas matérias? Ah, eu não sabia”. Sim! O aluno não só não fez a prova como também diz, na cara dura, que não sabe se fez e muito menos sabe, após um semestre, que o professor ministra duas disciplinas, e não uma. Esse aluno parece não estar em uma escola pública, e sim numa espécie de supletivo mal arrumado, onde ele faz provas sem estudar e arranca uns pontos para que o professor possa considerar algo e, então, empurrá-lo para o ano seguinte.

Na escola pública do interior do Estado de São Paulo, no meu tempo de estudante, o uniforme era fundamental. Tínhamos de vir limpos, com a roupa passada, impecáveis. E que não faltasse uma peça! Era assim que tínhamos de estar na escola: de prontidão e iguais. O uniforme não uniformizava nossas diferenças. Ao contrário, ele nos qualificava como estudantes. Era um orgulho colocar a camisa branca e vê-la aumentar as estrelas no ombro, indicando os graus, os anos a mais.

No Rio de Janeiro, hoje, o uniforme é adendo. Cada um vem para a aula do modo que quer. Uma camisa aqui e ali do uniforme se confunde com outras roupas. Aliás, camisa branca, nem pensar, pois hoje se escolhe a roupa que apareça menos a sujeira! E olha que hoje temos asfalto, bem diferente da minha época! O shortinho curto e o chinelo de dedos e algo comum hoje. A praia e a escola se confundem mesmo em cidades onde não há praia. Todos arrastam o pé, para o chinelo não escapar. Uma juventude inteira incapaz de andar de sapatos, que anda vagarosamente. As meninas, no dia em que colocarem um salto, cairão como pamonhas amolecidas, pensando estar numa escada de bombeiros. Parecem mendigos, mas não são. Vários, já estão longe de serem pobres.

Na escola pública que frequentei, os professores viviam bem, tinham sua casa, seu carro e logo depois de alguns anos, podiam comprar um sitiozinho. Com poucas aulas por semana, pertenciam ao grupo social do juiz, do prefeito e do padre. Eles eram a elite intelectual da cidade. Não estavam longe da elite política e econômica. Caso não estivessem entre a elite econômica, eram convidados a frequentar os mesmos lugares, pois a capacidade intelectual lhes dava o passe. Professoras e professores eram visados para o casamento por moças e moços, donos da terra local. As famílias mais ricas tinham orgulho de incorporar um professor, às vezes mais que um profissional liberal, como o médico ou o engenheiro ou o advogado (sim, naquela época, advogado era coisa rara).

No Rio de Janeiro de hoje, o professor chega de ônibus, chacoalhando e descabelado. Veste jeans pior que o dos alunos mais desarrumados. Nem se pode dizer que ganha mal – chega mesmo a não ganhar nada às vezes. Come mal. Fica atento a tudo que o cerca, com medo; pode a qualquer momento ser agredido por algum estudante, dentro da escola, ou então agredido pela polícia, que quer sua cabeça por causa da notícia de greve que, enfim, nem mesmo se concretizou. Casar com gente mais rica? Ora, bolas, não consegue casar com nada que não com a desgraça.

A escola pública que eu frequentei me fez jogar basquete; pude tornar-me campeão dos “jogos colegiais”. Foi uma escola que me fez aprender inglês. Até francês. Era uma escola que poderia participar do campeonato de bandas e fanfarras de São Paulo – algo famoso! Não participava, mas, se quisesse, teria faturado algum prêmio, certamente.

A escola pública do Rio de Janeiro atual não consegue dar os primeiros esportes básicos para o aluno. Aliás, penso que talvez nem existam mais os “jogos colegiais”. Línguas? Ah, que piada, nem o português os alunos sabem. Bandas e fanfarras? Na escola pública do Rio? Nem capoeira, que é da terra!

Somos hoje um dos últimos países nos exames internacionais do tipo dos do PISA . Estamos emburrecidos porque destruímos nossa escola pública. Em parte com a ditadura militar e em parte com já quarenta anos de democracia e descaso, acabamos de vez com a escola pública, em especial com a de ensino médio. E não há nenhum movimento no horizonte para a sua recuperação. Em alguns estados a escola pública existe apenas como local, não mais como instituição. Em outros, nem mesmo o prédio se mantém em pé. O reflexo disso na universidade está visível. Vamos indo a passos rápidos para o fundo do poço. E estamos felizes. Temo que o preço dessa felicidade, quando cobrado, possa ser alto. Já é alto.

© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ